Poucos dias após 55 presos
morrerem no interior de estabelecimentos prisionais do Amazonas durante mais
uma chacina no sistema presidiário brasileiro, a Câmara dos Deputados
interrompeu seus trabalhos para discutir a situação das unidades carcerárias do
país. Por quase duas horas, mais de 20 oradores, entre parlamentares, agentes
da Segurança Pública e especialistas se revezaram, divergindo sobre a eficácia
da terceirização da gestão dos presídios e do aprisionamento em massa.
"Óbvio que este sistema
não funciona e precisa ser repensado”, disse a advogada e coordenadora do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), Maíra Fernandes,
lembrando que uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da própria Câmara dos
Deputados já classificou o sistema penitenciário como uma “sementeira da
reincidência”.
“É uma forma cara de tornar as
pessoas, especialmente os jovens negros e pobres, em pessoas piores”, disse
Maíra, sustentando que, enquanto um preso que cumpre pena no Complexo
Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, custa ao estado do Amazonas R$
4,7 mil ao mês, o custo médio de um detento em unidades carcerárias não
privatizadas é de cerca de R$ 2,4 mil mensais. Administrado por uma empresa
privada, a Umanizzare Gestão Prisional e Serviços, o Compaj foi palco do
assassinato de 15 detentos no domingo (26).
Na segunda-feira (27), outros
40 presos foram mortos na mesma unidade e em outros três estabelecimentos
prisionais de Manaus: Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat); Centro de
Detenção Provisória Masculino (CDPM 1) e Unidade Prisional do Puraquequara
(UPP). Todas as quatro unidades, além de outras duas, são administradas em
sistema de co-gestão com a mesma empresa, que, nos últimos quatro anos, recebeu
cerca de R$ 836 milhões pela prestação dos serviços.
“Estamos investindo muito mal.
Um estudante do ensino médio custa, por ano, R$ 2,2 mil. É preciso repensar
estes modelos de privatização que seguem a lógica de lucro por preso e que
funcionam como hotéis, onde uma cela vazia é um prejuízo. Estas propostas vão
sempre criar mais vagas”, acrescentou Maíra, destacando que, com o
encarceramento em massa, o déficit de vagas obriga que réus primários
condenados sejam colocados juntos com criminosos perigosos ou membros de
organizações criminosas, tanto em estabelecimentos privatizados ou não.
País prende "mal"
Cooordenador do Centro de
Apoio Operacional Criminal do Ministério Público do Maranhão, o promotor José
Cláudio Cabral Marques frisou que, embora já detenha a terceira maior população
carcerária mundial, o Brasil não prende muito, mas “mal”. Para justificar sua
opinião, Marques apresentou números da Secretaria de Segurança Pública do
Maranhão, segundo a qual, entre 2015 e 2017, foram registrado 120 mil crimes
violentos na região metropolitana de São Luís. No período, contudo, foram
efetivadas apenas 1,4 mil prisões. “Não estamos prendendo muito. Estamos
prendendo mal. Precisamos de mais investigação, de maior integração [entre as
forças de segurança pública]”, argumentou o promotor.
Secretário de Segurança
Pública e Administração Prisional de Minas Gerais, Mário Lúcio Alves de Araújo,
disse que não há como tratar de segurança pública sem discutir melhorias no
sistema prisional. “Nossa sociedade tende a ficar de costas para este assunto
de extrema relevância. Quer segurança pública, mas não está dando a devida
atenção ao sistema prisional”, disse Araújo, que é general da reserva do
Exército. Para ele, não há soluções mágicas para a melhoria do sistema
carcerário.
“Só vamos melhorar o sistema
prisional com muito trabalho e atenção a este segmento que cuida de mais de 700
mil presos no sistema”, comentou Araújo, defendendo a valorização dos agentes
penitenciários, que cobram um plano de carreira.
Assessora do Instituto
Igarapé, Dandara Tinoco disse que o país não consegue cumprir os objetivos da
Lei de Execução Penal no tocante à ressocialização dos presos. “Hoje, só 15%
das pessoas presas trabalham e 12% estudam. Pensar em atividades que preparem
os presos para a vida em liberdade é fundamental. Estamos falando em ganhos não
só para as trajetórias individuais destas pessoas, mas também para a sociedade,
uma vez que estamos falando em alternativas ao cometimento de novos crimes.”
O policial militar e vereador
em Joinvile (SC), Richard Harrison Chagas dos Santos, falou rapidamente sobre
sua experiência administrando a Penitenciária Industrial Jucemar Cesconetto
para defender o modelo de gestão prisional que levou a unidade a, segundo ele,
ser apontada como um modelo de reintegração dos apenados. Além de reduzir um
dia de sua pena a cada três dias que preste serviços a uma das empresas
privadas conveniadas, o preso também consegue obter uma renda mensal que é
repassada a sua família.
Modelo de gestão
“Os índices de reincidência
criminal na Penitenciária Industrial de Joinvile são de 19%, contra, segundo
alguns dados, 80%, 83% em outras unidades do país”, afirmou Santos, dizendo que
o modelo de reintegração condiz com o que preconiza a Lei de Execução Penal,
que determina que, à exceção da restrição da liberdade, deve ser garantido ao
preso um ambiente o mais semelhante possível ao mundo exterior.
“Não há receita nacional para
todo o sistema, mas é preciso reforçar esta conexão com a comunidade
empreendedora e educadora. Os espaços de segregação podem ter uma dinâmica
nacional, mas os espaços de desenvolvimento de atividades que pode aproximar
estes indivíduos da sociedade precisam de soluções locais” defendeu o vereador.
Para o coordenador do Núcleo
de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Emanuel Queiroz
Rangel, o estado do Rio de Janeiro é um exemplo de que o aprisionamento massivo
não ajuda a reduzir a criminalidade. De acordo com Rangel, entre 2003 e 2019, o
número de pessoas encarceradas no estado saltou de 24 mil pessoas para mais de
53 mil apenados. “E, neste período, a sensação de insegurança da população se
agravou. Mais prisões não melhoraram em nada a situação”, comentou Rangel,
citando dados da Organização das Nações Unidas (ONU) para sustentar que estudos
sérios apontam não haver relação entre o encarceramento e a redução da
criminalidade.
Agentes penitenciários
Convidados a participar do
debate, agentes penitenciários aproveitaram a oportunidade para cobrar dos
parlamentares a aprovação da PEC 372/2017, que cria as polícias penais federal,
estaduais e distrital, o que permitirá que os agentes penitenciários tenham os
mesmos direitos da carreira de policial. Os representantes da Federação
Sindical Nacional dos Servidores Penitenciários (Fenaspen), Fernando Ferreira
Anunciação, e da Associação Nacional dos Agentes Penitenciários do Brasil
(Agepen), Wilson Camilo, também se somaram aos que criticam a terceirização da
gestão de unidades prisionais.
“Em 2017, um desastre em
Manaus causou espanto em todo o mundo. Cinquenta e seis seres humanos foram
mortos em um presídio de responsabilidade de uma empresa privada. Em 2019, esta
mesma empresa é responsável pela morte de mais 55 seres humanos encarcerados
nesta mesma unidade [o Compaj]. E há quem continue falando em privatização. Mas
é preciso lembrar que, no Espírito Santo, uma recente rebelião foi rapidamente
controlada. A diferença é que, no Espírito Santo, o sistema é público. Os
profissionais são capacitados, estão investidos no cargo e representam o Estado
dentro do sistema”, comentou Camilo.
“Não podemos vender o
criminoso para a iniciativa privada, para ser explorado pela iniciativa
privada. Isto é algo que não está dando certo nos Estados Unidos, porque,
então, fazê-lo no Brasil. A situação do sistema penitenciário passa pelo
reconhecimento constitucional dos seus servidores”, acrescentou Anunciação,
classificando a situação do Compaj, em Manaus, como um “crime, uma falcatrua e
algo que precisa ser combatido veementemente”.
Procurados, o governo do
Amazonas e a secretaria estadual de Administração Penitenciária ainda não
comentaram as críticas ao sistema de co-gestão das unidades prisionais.
Agência Brasil
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