Em 2017, Myllena Souza, 29, analista de marketing, começou a perceber que algo não estava bem. O choro era constante, o cansaço mental parecia não ter fim e o corpo começou a reagir. Na sala de aula, o professor Vanderson Gomes, 39, também começou a se comportar diferente. A mudança de humor era frequente e, de uma pessoa alegre e extrovertida, passou a ser visto como hostil e mal-humorado. Falta de ar e choro incontrolável também o atingiam. Os dois não se conhecem, mas têm algo em comum: no auge da vida profissional, chegaram ao limite da saúde mental e precisaram se afastar dos seus empregos.
Dados do Ministério da Previdência Social mostram que eles não estão sozinhos. Em 2024, mais de 440 mil brasileiros foram afastados do trabalho em razão de transtornos mentais e comportamentais, número que dobrou em dez anos. Myllena e Vanderson descobriram, de forma dolorosa, que esses transtornos não escolhem momento nem profissão e que ignorar os sinais do corpo e da mente pode ter um preço alto. “O meu emocional estava abalado e eu não consegui entender o porquê”, lembra a analista de marketing. Foi o primeiro diagnóstico: ansiedade e depressão recorrente. Com apoio da empresa e da família, iniciou tratamento, mas continuou trabalhando na certeza de que estaria curada.
Porém, seis anos depois, o corpo voltou a cobrar. “Eu cuidava, mas não dei a pausa. Quando foi em 2023, eu olhei e disse: não consigo mais.” As crises de ansiedade se intensificaram, acompanhadas de falta de ar, tremores e dores físicas. “Meu corpo estava gritando e eu dizia pra mim que conseguia, mas eu não estava reagindo.”
O afastamento foi inevitável e, particularmente, doloroso. “Aceitar foi muito difícil. Eu me cobrava demais, queria entregar o meu melhor, mas não estava conseguindo.” Além disso, ela teve que lidar com um segundo fator que trouxe mais ansiedade num determinado momento: burocracia com o INSS. “Foi complicado, porque estava no período de mudança para o sistema digital, se tinha erro de documentação, tinha que retornar o processo. Num momento em que o sistema deveria ajudar, eu ficava mais ansiosa.”
Já o professor Vanderson começou a notar as mudanças em sala de aula e viu, literalmente, seu sorriso desaparecer gradativamente. “Sempre, no exercício da minha profissão, fui muito sorridente, alegre, criativo, dinâmico, animado, motivado, e isso, assim, sumiu.” As crises de ansiedade vinham acompanhadas de falta de ar e choro incontrolável. “Precisava sair da sala e ficava o resto do expediente chorando.”
Os alunos começaram a estranhar algumas situações de hostilidade e o assunto chegou aos pais que procuraram a coordenação da escola para entender o que estava acontecendo. “Percebi que meio que já estava fugindo do meu controle”, relembra. A sugestão de procurar o médico e pedir um tempo de afastamento veio do CEO da escola e assim veio o diagnóstico: depressão e transtorno de ansiedade generalizada.
Mas a princípio ele diz que se sentiu discriminado pela situação que estava passando quando a coordenação da escola sugeriu que ele apenas reduzisse a carga horária. “Isso porque me foi dito que era inconveniente para a escola que eu ficasse colocando atestados com certa frequência. Ouvi também que eu precisava me esforçar mais para ficar animado”, conta. A situação só se reverteu com a intervenção do CEO. “Ele teve um olhar mais humanizado. Disse que eu não estava bem e me orientou a buscar o afastamento.”
Diferente de Myllena, Vanderson não teve dificuldades burocráticas. O processo pelo INSS foi feito online. “Deu tudo certo e eu passei um pouco mais de dois meses afastado, recebendo direitinho o benefício que não ficou muito abaixo do meu salário real.”
Descobertas na tentativa de recomeçar
O tempo longe do trabalho trouxe novas perspectivas nos dois casos relatados nesta reportagem. Myllena entendeu que o cuidado consigo mesma precisava vir em primeiro lugar. Depois de três meses, ao voltar ao trabalho, ela percebeu que ainda não era hora. “Eu só consigo dar o meu melhor se eu estiver bem. Voltei achando que estava pronta, mas não estava.”
O segundo afastamento durou dois meses e, ao retornar, ela decidiu mudar de área. Deixou o atendimento ao público e foi para o marketing, uma descoberta que abraça até hoje. A mudança fez parte de um processo mais profundo de amadurecimento. “Eu disse: não consigo mais ficar no atendimento. Não me faz bem, não vou insistir. Antes eu tinha medo do que o outro ia achar. Hoje eu sei o que quero pra minha vida.”
A rotina agora inclui acompanhamento psiquiátrico, terapia e hábitos mais saudáveis. “Atividade física e alimentação ajudam muito”, conta. Mesmo após recaídas recentes, uma delas após sofrer um episódio de assédio em transporte público e outra pela dor do luto ocasionada pelo falecimento de pessoas próximas, ela reconhece o progresso. “Hoje estou estável. Consigo lidar melhor com as minhas emoções e ressignificar as coisas.”
Vanderson também sentiu alívio no primeiro afastamento. “Consegui melhorar o sono e me dedicar às atividades físicas. A autoestima foi voltando.” O retorno, porém, trouxe insegurança. “Tinha medo do julgamento dos colegas. Antes eu era alegre, e agora achavam que eu era mal-humorado.”
Apesar do acolhimento inicial, as crises do docente voltaram. “Tive uma crise de pânico no primeiro dia. Depois, as atitudes dos alunos voltaram a me causar mal-estar porque eles meio que se acomodaram e voltaram com a indisciplina.” Isso o levou, três meses após retornar, a se afastar novamente. “Vi que não foi tempo suficiente pra me curar 100%.” Durante o tratamento, Vanderson descobriu uma nova paixão: a dança. “Eu me profissionalizei, virei instrutor e comecei a dar aulas.” Agora, planeja migrar aos poucos da educação básica para o ensino da dança. “É outra energia, outro público. Me faz bem.”
O número de brasileiros afastados do trabalho por transtornos mentais e comportamentais mais que dobrou nos últimos dez anos, alcançando o recorde histórico de 440 mil afastamentos em 2024, segundo dados do Ministério da Previdência Social. Em 2014, tinham sido cerca de 203 mil casos. O salto é de 67% em relação a 2023. Entre as causas mais frequentes estão transtornos de ansiedade (141.414 casos), episódios depressivos (113.604) e transtorno depressivo recorrente (52.627). Também figuram na lista transtornos bipolares, reações ao estresse grave e problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas, como álcool e drogas.
Para a psicóloga Mariane Dantas, da Divisão de Atenção à Saúde do Servidor da UFRN, o aumento pode refletir tanto o agravamento das condições de vida quanto o maior reconhecimento da importância da saúde mental. “É um número que assusta, mas também pode ser reflexo da busca por ajuda”, avalia. Segundo ela, o debate social mais aberto e a redução do estigma têm levado mais pessoas a procurar psicólogos e psiquiatras, o que contribui para uma identificação mais precisa dos diagnósticos.
Mariane lembra que o ambiente de trabalho é, muitas vezes, o espaço onde o sofrimento se manifesta. “No trabalho, a pessoa lida com dificuldades que exigem habilidades que talvez ela não tenha”, explica. Profissionais de saúde, segurança, educação e atendimento ao público estão entre os mais expostos, tanto pela pressão quanto pela natureza das atividades. “A falta de reconhecimento e de sentido no que se faz tem levado muitos a atuar de forma automática, apenas para ‘pagar as contas’”, destaca a psicóloga.
Na avaliação da especialista, cabe às empresas desenvolver políticas de bem-estar mental, com ações preventivas e estratégias de intervenção, mas ressalta que o acesso à saúde mental no país continua restrito. “É preciso treinar líderes para identificar sinais e saber encaminhar. Além disso, o acesso ao tratamento ainda é elitizado, e a rede pública não dá conta da demanda”, defende.
O Brasil está em processo de revisão da Norma Regulamentadora 01 (NR-01), que prevê a identificação dos riscos psicossociais no ambiente laboral. “Cada caso precisa ser tratado de acordo com as necessidades do colaborador e da empresa”, diz a psicóloga organizacional Jéssica Mendes, do Hospital Onofre Lopes.
Ela associa o aumento dos afastamentos à sobrecarga e também ao impacto da pandemia da covid-19. “Estamos vendo um crescimento exponencial dos afastamentos após a pandemia. No mundo do trabalho atual, é comum a sobrecarga de tarefas e cobranças excessivas, distanciando essas pessoas de práticas saudáveis, como gerenciamento adequado de tempo, metas factíveis, ações de qualidade de vida e boas relações sociais”, diz.
Tribuna do Norte
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