O ex-aluno Paulo Alves de
Sousa diz que não guardou nada da época do curso de alfabetização: "Se a
polícia pegasse, a gente ia preso". Foto: Caio Castor/Repórter Brasil
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Por Marcelle Souza, especial para o Repórter Brasil
Um povoado desconhecido no
sertão brasileiro, com alta taxa de pobreza e uma multidão de trabalhadores
analfabetos, viveu uma revolução: em apenas 40 horas, um grupo de professores
liderados pelo educador Paulo Freire ensinou 300 adultos a ler e a escrever.
Mais do que criar novos leitores, a primeira experiência de alfabetização em
massa do país, realizada em 1963, em Angicos, no Rio Grande do Norte, gerou
novas possibilidades de emprego, deu aos trabalhadores o tão sonhado poder do
voto e os ensinou sobre seus direitos – especialmente os trabalhistas.
O resultado deu tão certo que
inspirou o Plano Nacional de Alfabetização, que nunca chegou a sair do papel
por causa do golpe militar de 1964. Alguns dos principais articuladores da
ideia, entre eles o próprio Paulo Freire, terminaram exilados.
Mais de cinco décadas depois,
o ódio ao educador voltou à cena e guia a atual política educacional no país. O
presidente Jair Bolsonaro afirmou, enquanto candidato, que entraria com um
"lança-chamas no MEC para expulsar Paulo Freire lá de dentro".
Ironicamente, o projeto
executado em Angicos foi financiado pela Aliança para o Progresso, do governo
dos Estados Unidos, que via na alfabetização dos brasileiros uma das armas na
luta contra o avanço do comunismo na América Latina.
Enquanto o método Paulo Freire
virou uma bandeira a ser combatida, 13 milhões de jovens e adultos com mais de
15 anos ainda não sabem ler nem escrever, dado que coloca o Brasil entre os dez
países com mais analfabetos no mundo, segundo a Unesco (Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
"O projeto de Angicos
custava 36 dólares por aluno e o prazo de aprendizagem era curto. Se até hoje
não foi retomado, é por intenção de não gerar condições de aprendizagem para
uma parte da população, que termina por não desenvolver o seu potencial",
diz o advogado Marcos Guerra, que foi o coordenador da experiência na cidade.
Ele explica que a cidade foi escolhida por ter, na década de 1960, o maior
índice de analfabetismo do Rio Grande do Norte.
A palavra é trabalho
Para angariar os alunos em
Angicos, professores percorreram a cidade anunciando porta-a-porta a nova
escola. Como a cidade não tinha escolas suficientes, salas de aulas foram
improvisadas em casas de moradores e até na delegacia, onde tinham presos e policiais
analfabetos. Na década de 1960, 40% dos brasileiros eram analfabetos e só um
terço das crianças frequentavam a escola.
Considerada subversiva pelos
militares, a metodologia consistia, primeiro, em levantar palavras que faziam
parte do cotidiano dos alunos. "Por exemplo, 'tijolo'. A professora
perguntava quem sabia fazer tijolo, quanto vendia, quem comprava, de quem era o
lucro maior – se do proprietário ou do trabalhador que o fabrica. Chamavam isso
de aula de politização", lembra a ex-aluna Maria Eneide de Araújo Melo,
62, que hoje é professora aposentada.
Cerca de 300 moradores de
Angicos participaram do curso de alfabetização de adultos e ganharam o direito
ao voto
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Naquela época, as condições de
trabalho na região eram precárias, havia muita desigualdade social, e a maior
discussão se deu quando os professores projetaram para os alunos a palavra
'trabalho'. A partir desse momento, foram incentivados a ler em sala artigos da
CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
"Eles passaram a
reivindicar direitos, como repouso semanal remunerado e jornada de trabalho,
que era intensiva e ultrapassava as horas estabelecidas pela lei. A carteira
assinada os entusiasmava", conta a juíza aposentada Valquíria Félix da
Silva, 78, que foi uma das professoras do curso na cidade.
Depois do curso, uma greve na
cidade parou a construção de uma obra. Acredita-se que eles teriam sido
inspirados pelo ensino dos direitos trabalhistas em sala de aula, com a
metodologia freiriana. "Os trabalhadores disseram ao dono da empresa que
sabiam que tinham direitos. Eles pediam carteira assinada, repouso semanal
remunerado e férias. E o patrão disse: 'eu não dou isso não, ninguém dá'",
lembra Guerra.
Novos caminhos
Maria Eneide nem tinha
completado os 7 anos necessários para iniciar a alfabetização, quando tratou de
convencer a mãe e o pai analfabetos de que precisavam aproveitar a nova escola
que chegava na cidade. "Meu pai trabalhava na agricultura, saía de manhã e
só voltava à noite. Às vezes, ele estava cansado, pensava em faltar, mas a
professora ia lá em casa buscá-lo para a escola", lembra ela, que
acompanhou os pais no curso.
Depois da formatura, o pai
deixou o trabalho no campo para ser pedreiro e, por fim, virou comerciante na
cidade. A mãe, por sua vez, decidiu realizar o sonho de entrar para a aula de
corte e costura, porque agora já sabia anotar as medidas.
Mas a pequena Maria Eneide
queria ser professora como "a dona Valquíria", com quem aprendeu a
ler na turma de adultos. "Fui alfabetizada no curso de Paulo Freire. Daí,
quando eu entrei para o primeiro ano do fundamental, eu já falava de reforma
agrária, das leis da Constituição. As professoras não gostavam, diziam que eu
estava mentindo. As pessoas não eram esclarecidas naquela época", diz ela,
que acabou estudando pedagogia e hoje é professora na cidade.
Novos leitores e eleitores
A revolução em Angicos
aconteceu também pela realização de um desejo antigo de muita gente: o poder do
voto. Naquela época, analfabetos não podiam votar. Antes do curso, havia cerca
de 800 eleitores cadastrados na cidade. Depois da formatura, o município ganhou
300 novas inscrições.
Francisca de Brito, ex-aluna,
frequentou o curso de alfabetização mesmo sob ameaças da mãe. Foto: Caio
Castor/Repórter Brasil
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"A gente que era pobre
não era nem bem visto, ninguém podia nem entrar no meio da sociedade, em festa
desse povo, porque era pobre, era da cor morena. Mas daí a professora começou a
explicar que a gente ia aprender a ler para conhecer os nossos direitos, e eu
tinha vontade de aprender, fazer meu nome que era pra votar. E eu
aprendi", lembra Luzia de Andrade, 88.
Apesar do entusiasmo de todos,
o clima em 1963 já era tenso no país. Logo após o golpe militar, Paulo Freire
foi demitido da então Universidade do Recife, permaneceu 70 dias preso e, em
seguida, teve que deixar o país, assim como outros educadores do projeto, como
Marcos Guerra.
Em Angicos, estabeleceu-se um
silêncio que durou quase 30 anos. Estava proibido falar e lembrar das 40 horas
que haviam mudado a cidade. "Quando chegou essa notícia de que o homem
[Paulo Freire] tinha sido exilado, que tinha sido preso, muita gente, com medo,
escondeu caderno, escondeu livro, queimou", conta Francisca de Brito, 74.
"A gente não tem nada guardado dessa época porque se a polícia pegasse, a
gente ia preso", diz Paulo Alves de Sousa, 77, outro ex-aluno.
A massa virou povo
Antes do golpe de 1964, a
experiência era tão importante para o país que o último dia de aulas em Angicos
contou com a presença do então o presidente João Goulart, do presidente da
Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) Celso Furtado e de
governadores de Estados do Nordeste.
Marcos Guerra, coordenador do
curso em Angicos, foi exilado após o golpe de 1964. Foto: Caio Castor/Repórter
Brasil
Em meio às autoridades, um
aluno pediu a palavra e improvisou um discurso sobre a experiência na cerimônia
de formatura. "Em outra hora, nós era massa, hoje já não somos massa,
estamos sendo povo", disse o agricultor Antônio Ferreira.
O presidente João Goulart
ainda ficou curioso ao saber que uma criança tinha aprendido a ler com a
metodologia voltada para os adultos. Era Maria Eneide, chamada à frente para
testar as novas habilidades para o público ilustre.
"Ele disse: 'lê aqui'. E
eu li. Depois me perguntou: 'você quer ganhar o quê?' E respondi que queria uma
bolsa para levar o material para a escola." Trinta anos depois, em visita
a Angicos, Paulo Freire decidiu refazer a pergunta para a ex-aluna: "se o
presidente hoje perguntasse o que você queria de presente, o que você
diria?"
"Eu queria salário digno
a todos os professores".
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