Usar drogas não é crime no
Brasil, mas portar drogas para o consumo próprio é. A polêmica que mobiliza
representantes de direitos humanos e estudiosos do tema chegou ao Supremo
Tribunal Federal (STF). Nesta quinta-feira, a mais alta corte do país vai
julgar o recurso em que uma pessoa flagrada com pequena quantidade de maconha
contesta a constitucionalidade da lei. Para a defesa, impedir alguém de portar
droga para o uso próprio fere a intimidade e a liberdade individual, valores
expressos na Constituição Federal. Se o réu ganhar a causa, a mesma decisão
terá de ser aplicada em processos semelhantes.
Hoje, há 96 ações desse tipo
paralisadas, aguardando o STF bater o martelo. Mas uma decisão favorável ao réu
também teria efeito de lei, descriminalizando, portanto, o porte de drogas no
país inteiro.
O caso chegou à corte em 2011.
Há nove “amicus curiae” no processo – ou seja, interessados formais na causa
que terão o direito de fazer sustentação oral em plenário antes do início do
julgamento. Em seguida, é a vez de a Procuradoria Geral da República (PGR)
fazer uma explanação. Depois, cada um dos 11 ministros do STF vai declarar seu
voto, a começar pelo relator do processo no tribunal, o ministro Gilmar Mendes.
A expectativa, no entanto, é que a votação não termine hoje, já que um dos
membros deve pedir vista do processo, o que adiaria a decisão.
A Lei de Drogas considera
crime “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo,
para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação
legal”. No entanto, a lei não prevê a prisão de condenados pela prática. As
penas listadas são advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de
serviços à comunidade e obrigatoriedade de comparecimento a curso educativo.
Eventual condenação pelo crime também tira da pessoa a condição de réu
primário, podendo agravar sua situação no caso de uma nova condenação futura.
Para o ministro Marco Aurélio
Mello, do STF, o consumo de drogas deveria ser tratado como questão de saúde
pública, e não com a penalização do usuário:
- Ao meu ver, é um problema de
saúde pública, não de Direito penal.
Ele defende que o traficante
não pode ser tratado como usuário, e ressalta a importância do combate ao
tráfico de drogas. O ministro também pondera que, embora o uso de entorpecentes
não implique em pena de prisão, pode comprometer a liberdade da pessoa se
houver uma condenação futura.
- Não há muita razoabilidade
você ter um crime sem pena, porque o crime pressupõe pena. Fica incongruente.
Mas, mesmo sem a pena, tem implicações, o réu perde a primariedade. Tem
implicações, considerando a liberdade de ir e vir futura. A apenação (de uma condenação
futura) pode ser maior (pelo registro de antecedente).
Em maio, o ministro Luís
Roberto Barroso fez forte crítica à política de drogas do país ao mandar soltar
um jovem negro, morador de comunidade pobre no Rio Grande do Sul, que estava
preso preventivamente pelo porte de 69 gramas de maconha. Acusado de tráfico, o
rapaz estava há sete meses no presídio e foi beneficiado pelo habeas corpus. Na
decisão, o ministro afirmou que “no atual sistema prisional brasileiro, enfiar
jovens, geralmente primários, para o cárcere, em razão do tráfico de
quantidades não significativas de maconha, não traz benefícios à ordem
pública”.
Em entrevista dada ao GLOBO em
maio, o ministro falou sobre o recurso que discute a descriminalização do
consumo de drogas. Ele defendeu a definição da quantidade de droga apreendida
para configurar o crime de tráfico:
- Se o Supremo vier a
considerar que o Estado não pode legitimamente criminalizar tal conduta, haverá
uma pequena revolução na matéria. Conexa à questão está a necessidade de
definir, com certa clareza, a distinção entre porte para consumo e tráfico. Não
é uma questão banal, mas precisa ser enfrentada.
Assim como Marco Aurélio, ele
acredita que, “em matéria de drogas, é preciso menos direito penal e mais soluções
alternativas que envolvam superação de preconceito, informação, tratamentos e
reabilitação”.
O debate chegou à mais alta
corte do país por meio de um recurso apresentado pelo cearense Francisco
Benedito de Souza. Aos 55 anos, ele é dono de uma extensa ficha criminal e não
tem recursos financeiros. Seu advogado foi disponibilizado pela Defensoria
Pública do Estado de São Paulo. Segundo a Secretaria de Administração
Penitenciária do Estado de São Paulo, Souza é egresso do Centro de Detenção
Provisória de Diadema desde janeiro deste ano, após ter recebido alvará de
soltura por cumprimento de pena. O cearense foi preso, em 2009, por roubo à mão
armada e uso de documento falso.
Um mês depois de ser preso,
agentes penitenciários encontraram três gramas de maconha dentro de um
recipiente de marmita, na cela que Francisco de Souza dividia com outros 32
presos. Na ocasião, Souza admitiu a posse do produto. Depois, em depoimento,
negou fazer uso de qualquer tipo de droga. Ele explicou que, no dia, ele era o “laranja”
– sistema de rodízio em que um detento precisa assumir a autoria de determinada
prática delitiva. Em 2010, ele acabou condenado a prestar dois meses de serviço
comunitário.
O advogado Leandro de Castro
Gomes, da Defensoria Pública, recorreu ao STF. Para ele, “o porte para uso de
entorpecentes não produz nenhuma lesão a bem jurídico alheio” ou à saúde
pública. “A incriminação ofende direitos e garantias fundamentais do cidadão,
especialmente a intimidade e a liberdade individual. Não é possível aceitar que
uma norma infraconstitucional ofenda o ápice do ordenamento jurídico,
considerando crime uma conduta que está devidamente amparada por valores
constitucionalmente relevantes”, argumentou. O Ministério Público de São Paulo
insiste na condenação de Francisco Souza. Argumenta que há prova suficiente de
que ele portava a droga e que a prática está prevista na legislação penal.
A organização não
governamental Viva Rio é um dos “amici curiae” no processo. O coordenador de
Segurança Humana da entidade, Ubiratan Ângelo, defende a descriminalização do
porte de drogas para uso pessoal. Ele explicou que a lei não define a
quantidade de droga que diferencia o tráfico do uso pessoal. Portanto, quem
define isso é o policial, no momento da prisão. Isso daria margem ao tratamento
preconceituoso.
- A lei não estabelece a
quantidade e a qualidade da droga apreendida. O policial faz a distinção.
Então, hoje tem discriminação. Se a pessoa está no morro, é traficante. Se está
na praia, é usuário. Jovem classe média branco na Zona Sul do Rio com dois
cigarros de maconha é tratado como usuário. Se for um jovem negro, pego perto
do morro, é traficante. É justo isso? Essas injustiças acontecem porque a lei
deixa na mão do policial colocar na prática toda a discriminação que a
sociedade tem contra o pobre. A lei é louca! - protesta Ubiratan Ângelo, que
foi comandante-geral da Polícia Militar do Rio e hoje está na reserva.
Ele pondera que, se a lei não
considera crime o uso de drogas, não há motivo para tratar o usuário como
criminoso se ele for pego com substância ilícita para consumo próprio.
- Beber não é crime, só se
você causar dano a outra pessoa. Por que com maconha é diferente? Ninguém
consegue me dar essa explicação - argumenta.
No processo, também atua como
“amicus curiae” o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Em memorial
enviado ao STF, o advogado Arnaldo Malheiros Filhos argumenta que “não se está
pleiteando a liberação total do porte de drogas para uso próprio, apenas
atacando a constitucionalidade de sua criminalização”. No mesmo texto, Malheiro
afirma que “o Estado, pelo braço armado do Direito Penal, deve ficar longe da
intimidade e da vida privada do cidadão, abstendo-se de nela interferir, a
menos que da conduta individual surja dano ou ameaça de dano a terceiro”.
Outro “amicus curiae”, o
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), também enviou memorial ao
STF na mesma linha de pensamento. “A incriminação do porte de drogas para
consumo pessoal colide com as balizas constitucionais que conformam a
intervenção penal, mormente porque a proteção constitucional da intimidade e da
vida privada impede que o Estado se imiscua na vida do cidadão, salvo quando
houver lesão ou risco de lesão a interesse de terceiros”.
Ainda de acordo com o IBCCRIM,
o porte para consumo pessoal não prejudica a saúde pública. “Como é possível
uma conduta destinada a ofender a saúde individual lesar a saúde pública? Há
uma evidente contradição entre a destinação pessoal do consumo e a suposta
ofensa, ou mesmo risco de ofensa, à saúde pública”, argumenta a entidade.
Em outro texto enviado ao STF,
de autoria do advogado Pierpaolo Bottini, a Comissão Brasileira sobre Drogas e
Democracia (CBDD) alerta para a importância de o tema ser discutido. “Pedimos à
sociedade o esforço da discussão serena e equilibrada de um tema que não pode
esperar”, conclamou.
O Globo
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