
Uma nova pesquisa propõe que a expedição de Pedro Álvares Cabral pode não ter chegado inicialmente à região onde hoje fica Porto Seguro, na Bahia. Segundo os autores, o desembarque descrito por Pero Vaz de Caminha em 1500 teria ocorrido primeiro no litoral do Rio Grande do Norte. O artigo foi publicado em setembro no periódico Journal of Navigation, da Universidade de Cambridge.
O estudo foi feito pelos físicos Carlos Chesman, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Cláudio Furtado, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que analisaram dados da carta e os compararam com informações sobre correntes marítimas e ventos do período da viagem.
“Consideramos datas, localidades, distâncias, profundidades e relacionamos isso com os dados que temos à disposição hoje sobre ventos e correntes”, afirmou Chesman. A carta, primeiro registro escrito sobre o Brasil, descreve à d. Manuel 1º a descoberta da “terra nova”.
Caminha relata que a frota de Cabral avistou um “grande monte, mui alto e redondo”, nomeado Monte Pascoal, e lançou âncora “à boca de um rio”. Os físicos concluíram, com cálculos e expedições de campo, que o monte descrito seria o Serra Verde, em João Câmara, e o rio mencionado seria o Punaú, que desemboca na praia de Zumbi, em Rio do Fogo.
“Pelas descrições da carta, eles percorreram cerca de 4.000 quilômetros saindo de Cabo Verde. Essa distância corresponde à rota que traçamos, que considera as correntes e os ventos. Também corresponde à distância até Porto Seguro, mas se a rota for uma linha reta, o que é improvável”, disse Chesman. Os pesquisadores afirmam que o desembarque do dia seguinte à chegada teria ocorrido na região da praia do Marco, entre São Miguel do Gostoso e Pedra Grande.
A hipótese potiguar é citada desde o século passado por intelectuais do Rio Grande do Norte, como Luís da Câmara Cascudo. Segundo Chesman, essa discussão motivou a pesquisa iniciada durante a pandemia de Covid. Um colóquio científico está sendo organizado por ele para o próximo ano no estado. “Nossa intenção é que a discussão seja reaberta. Nós fizemos uma pesquisa a partir da física e estamos apresentando ela a historiadores, para que eles tomem conhecimento.”
Estudos anteriores reforçam a chegada da frota de Cabral na Bahia, como o trabalho do almirante da Marinha Max Justo Guedes, que em 1975 refez a rota e publicou O Descobrimento do Brasil, considerando ventos, correntes e características das embarcações.
Para a historiadora Ana Hutz, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é necessário considerar essas pesquisas. “A ideia da chegada a Porto Seguro tem base em cartografias e outros estudos, que também refizeram essa rota. Esses estudos não são citados pelos autores.”
Questionada sobre possíveis efeitos no ensino de história, a historiadora Juliana Gesueli, da PUC Campinas, disse que o tema exige mais pesquisas. “É preciso que haja mais pesquisas e evidências robustas para iniciar discussões que às vezes duram décadas para mudar os livros de história”, afirmou. “E precisa haver uma grande justificativa para mobilizar uma grande comunidade a fazer essa discussão.”
Gesueli disse que o ensino histórico enfatiza a estrutura colonial iniciada décadas depois, com ocupação portuguesa a partir da década de 1530. “A carta de Caminha é importante para datar o momento histórico, mas a ocupação portuguesa no Brasil só começou de fato a partir da década de 1530. Não acredito que possa causar uma grande mudança dos livros de história.”
Para chegar ao resultado, os físicos catalogaram dados numéricos da carta de Caminha e analisaram a trajetória da frota de Cabral entre a saída de Cabo Verde, em 23 de março de 1500, e os primeiros sinais de terra, em 21 de abril. Nas expedições realizadas no litoral potiguar, eles afirmam ter identificado formações semelhantes às descritas pelo escrivão.
“Na terceira expedição, três montanhas foram avistadas a aproximadamente 30 quilômetros da costa, próximas à praia de Maxaranguape. Viagens adicionais foram necessárias para melhor fotografar as montanhas e realizar medições batimétricas na região da plataforma continental”, diz a pesquisa.
“Com base nesse registro fotográfico, foi conduzido um estudo topográfico para identificar geograficamente essas três elevações. Utilizando imagens de satélite em 3D, determinou-se que a montanha mais ao norte, maior e mais larga, é provavelmente o verdadeiro Monte Pascoal, atualmente conhecido como monte Serra Verde”, afirmam os pesquisadores. Segundo a carta, o primeiro contato com indígenas teria ocorrido na praia de Zumbi, em Rio do Fogo.
No dia seguinte, após ventanias e chuvas, a frota navegou cerca de dez léguas (48 km) até outro ponto de desembarque, identificado pelos físicos como a região da praia do Marco.
Chesman disse que o estudo mostra a contribuição da física para outras áreas. “A ciência é interdisciplinar. O que fizemos foi usar a física para analisar fatos históricos e há uma contribuição nisso. Se uma revista como a Journal of Navigation aceita publicar, é porque é relevante.” Ana Hutz afirmou que a história precisa estar aberta a debates. Gesueli disse que o estudo reforça a interdisciplinaridade entre história e áreas das exatas. “Isso abre novas janelas”, declarou.
“Mas, para que isso tenha solidez, ele precisa estar um pouco mais próximo da metodologia de historiadores. Mas em que medida, e aqui eu faço uma mea-culpa, nós também não nos aproximamos e não olhamos para essa perspectiva?”
AgoraRN
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