Mais de um ano e meio depois
das rebeliões de janeiro do ano passado na Penitenciária Agrícola de Monte
Cristo, em Roraima, e na Penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte,
ainda é desconhecido o paradeiro de 79 presos. A informação consta de um
relatório entregue na semana passada ao Ministério dos Direitos Humanos pelo
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).
Após visitas de monitoramento
às unidades onde ocorreram as rebeliões, os autores do relatório ressaltaram a
possibilidade de essas pessoas terem sido vítimas de desaparecimento forçado em
contexto de ação ou omissão de autoridades públicas responsáveis pela custódia
ou pela segurança das unidades prisionais.
“Os casos envolvem desde a
omissão criminosa do Estado – ao não exercer sua obrigação de empreender
investigação e busca de corpos – até suspeitas fundadas em fortes indícios de
práticas de homicídio envolvendo agentes públicos, passando inclusive pela
ocultação de cadáveres”, diz o estudo.
O perito José de Ribamar de
Araújo e Silva, que participou das visitas às duas penitenciárias, diz que “há
descontrole de informações” e que os estados de Rondônia e Roraima devem
explicações sobre a localização dessas pessoas. “Esse descontrole faz com que
nós, pareando a informação das pessoas presas, aquelas que foram efetivamente
mortas e periciadas e aquelas que deveriam ser identificadas pelo estado como
presas nessas unidades, finalizamos o relatório apontando a existência de
desaparecimento forçado”, afirma Ribamar.
Na Penitenciária Agrícola de
Monte Cristo, onde 33 detentos morreram na rebelião, a administração não
consegue identificar oito pessoas que deveriam estar privadas de liberdade na
unidade. “Os orgãos públicos desconhecem se esses indivíduos estão mortos ou
foragidos. Esse cenário enseja enorme preocupação, podendo, inclusive, ser
identificado como casos de desaparecimentos forçados”, diz o texto.
Em Alcaçuz, onde a rebelião
resultou na morte de 26 pessoas, há 71 detentos que constam estar na unidade,
mas não foram encontrados durante a visita de monitoramento feita pelo MNPCT.
“As notícias iniciais tratavam
de mais de 100 mortes dentro de Alcaçuz, mas oficialmente foram comprovadas 26
dentro da penitenciária. Porém, esse número pode vir a ser maior, porque não
existe um número oficial de pessoas desaparecidas. (…) é possível que o número
de mortes se aproxime da estimativa inicial, ou seja, 90 mortos, dos quais 64
desaparecidos mais 26 mortos confirmados. A equipe do MNPCT obteve informações
de que (…) dentro da penitenciária havia uma fábrica de bola onde corpos podem
ter sido incinerados, assim como pode haver corpos enterrados em valas
improvisadas e nas fossas sépticas”, diz o relatório.
Busca de respostas
Em alguns casos, os peritos do
órgão de fiscalização e prevenção à tortura foram informados de que os presos
fugiram e, em outros, que foram transferidos. “Se estão foragidos, que
comprovação nós temos? Se foram mortos, onde estão os corpos? O Estado tem a
custódia das pessoas e não sabe dizer onde estão, tem que dar essa resposta aos
familiares e a toda sociedade”, questiona o perito.
Ribamar diz que entre os
mortos havia pelo menos um preso provisório e um que já havia cumprido a pena.
Para ele, o fenômeno do desaparecimento forçado emergiu no sistema
penitenciário com o que classifica de “falência múltipla dos órgãos de
fiscalização”.
“As chacinas que aconteceram
naqueles estados provaram que o estrangulamento do sistema de perícia faz com
que a perícia não dê conta desses casos”, afirma.
Ao receber o relatório, o
secretário nacional de Cidadania do Ministério dos Direitos Humanos, Herbert
Barros,r essaltou a necessidade de fortalecer a perícia independente nos
estados. “É necessário que busquemos juntos, o governo federal apoiando os
estados naquilo que for possível, a estruturação de mecanismos, com peritos
independentes nos seus posicionamentos e peritos que tenham a sustentabilidade
garantida para seus trabalhos.”
De acordo com o relatório, as
rebeliões de janeiro de 2017 em Alcaçuz e Monte Cristo e no Complexo Prisional
Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, foram acompanhadas de respostas reativas no
plano institucional. “Nem sempre as mais adequadas, uma vez que não revelaram
sustentabilidade em longo prazo, nem efetiva reversão das causas da violência
ou melhoria dos indicadores de garantias de direitos das pessoas presas,
familiares e trabalhadores”, ressalta o documento.
Este foi o terceiro relatório
apresentado pelo MNPCT, que iniciou suas atividades de fiscalização em 2015.
Segundo Ribamar, o primeiro relatório do órgão, que visitou o Compaj em 2015,
já prenunciava o que veio a ocorrer em 2017. “Ali estava uma combinação de
fatores explosivos, e o diagnóstico que o Mecanismo fez, infelizmente, veio a
se confirmar, porque as recomendações fundamentais feitas no relatório não
tiveram efetividade. Este é o nosso grande desafio.”
O tema dos desaparecimentos
forçados será alvo de um novo relatório do Mecanismo, com divulgação prevista
para o início de setembro.
Tortura
O relatório conclui que a
tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, “mais do que
práticas reiteradas, fazem parte do repertório regular de atuação das
instituições de privação de liberdade do país”.
Composto por 11 peritos com
prerrogativa de inspecionar e monitorar a situação de pessoas presas, o
Mecanismo visitou 48 instituições entre abril e dezembro de 2017. Foram
realizadas missões de inspeção em instituições como prisões, asilos, hospitais
psiquiátricos, comunidades terapêuticas e instituições do sistema
socioeducativo nos estados do Rio Grande do Norte, Tocantins, de Roraima e Mato
Grosso.
Recomendações
Nas missões de inspeção em
estabelecimentos do sistema prisional, o mecanismo propôs 481 recomendações,
das quais 345 foram direcionadas a unidades de privação de liberdade ou
internação. Desse total, 157 foram relacionadas ao âmbito prisional, 115 ao
sistema socioeducativo e 53 a instituições com características asilares.
O relatório destaca a
importância da fiscalização dos espaços prisionais pelos órgãos do sistema de
justiça. As principais recomendações a esses órgãos são a aplicação efetiva de
medidas cautelares diversas da prisão, das penas e medidas alternativas, bem
como socioeducativas em meio aberto, de audiências de apresentação ou de
custódia, revisão das internações compulsórias e fiscalização da liberação e
execução do plano de aplicação das verbas oriundas do Fundo Penitenciário
Nacional (Funpen).
O Mecanismo foi criado em
2015, após o Brasil ratificar o Protocolo Facultativo à Convenção Contra
Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da
Organização das Nações Unidas (ONU) em 2007. Ligado ao Executivo, mas com
funcionamento independente, faz parte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate
à Tortura (SNPCT), criado em 2013 pela Lei 12.847.
O relatório lembra que a
implementação do sistema é uma estratégia central no enfrentamento à tortura no
país e enfatiza que a demora na adesão dos estados “é reveladora do baixo
compromisso dos Poderes Executivo e Legislativo na transformação do atual
estágio de coisas”. Até o momento, apenas Rio de Janeiro, Pernambuco e
Tocantins instituíram Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura.
O secretário nacional de
Cidadania diz que, para consolidar o sistema de combate à tortura no país, é
necessário mais diálogo entre os órgãos do governo responsáveis pelo sistema
penitenciário. “É preciso estreitar ainda mais laços com o Ministério da
Segurança Pública, de um modo especial com o Departamento Penitenciário
Nacional e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciário, reforçar e
envolver mais os órgãos vinculados ao ministério”, afirma.
O relatório do Mecanismo de
Prevenção e Combate à Tortura será tema de audiência pública na próxima quarta-feira
(8) na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados.
Para a deputada Erika Kokay (PT-DF), é papel da comissão cobrar a implementação
das recomendações expressas no documento. “Vamos sugerir que a comissão
funcione como um observatório para que possamos, não apenas pontuar as
violações, mas ter uma atenção especial sobre as recomendações”, antecipa.
Agência Brasil
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