Previsto para durar 48 horas,
o bloqueio do aplicativo WhatsApp em todo o país determinado pela Justiça de
São Bernardo do Campo (SP) foi suspenso 12 horas depois por uma liminar do
Tribunal de Justiça do Estado após um recurso ser apresentado pela companhia. O
caso, que ganhou manchetes em todo o mundo, ainda não teve um desfecho final,
mas colocou em evidência o embate entre a Justiça brasileira e as redes
sociais, que parece ainda estar longe de terminar.
O desembargador Xavier de
Souza, da 11ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, disse que,
"em face dos princípios constitucionais, não se mostra razoável que
milhões de usuários sejam afetados em decorrência da inércia da empresa"
em fornecer informações à Justiça, uma decisão considerada acertada por
juristas e especialistas em direito digital ouvidos pela BBC Brasil.
Para eles, a decisão desta
quinta-feira deve dar força ao argumento de que empresas estrangeiras serão
mais pressionadas a liberar os dados requisitados pela Justiça.
"A decisão (de bloquear o
WhatsApp) foi um pouco desproporcional do ponto de vista jurídico, porque
prejudicou pessoas que nada tinham a ver com a questão - no caso, os usuários
do aplicativo no Brasil", afirma o desembargador Raimundo Nonato da Costa
Alencar, do Tribunal de Justiça do Piauí.
Alencar foi um dos magistrados
que cassaram uma liminar expedida em Teresina (PI) "desligando" o
mesmo aplicativo no Brasil, como punição pela sua recusa em fornecer o conteúdo
de mensagens pessoais para uma investigação policial sobre uma rede de
pedofilia.
Foi um caso semelhante ao
ocorrido agora, em que a juíza da 1ª Vara Criminal de São Bernardo pediu acesso
às informações do WhatsApp ao Facebook, que comprou o aplicativo em 2014,
envolvendo um homem acusado de latrocínio, tráfico de drogas e associação a uma
organização criminosa – o Primeiro Comando da Capital (PCC).
"Compreendo os motivos
que levaram tanto o juiz em Teresina quanto a juíza de São Bernardo do Campo a
tomarem a decisão. Ambos não tiveram alternativa para tentar fazer com que a
empresa colaborasse com as investigações de algo muito sério", afirma o
desembargador.
"Em um plano ideal, a
empresa receberia uma multa exemplar se constantemente desobedecesse a
determinações da Justiça. No plano atual, porém, a suspensão dos serviços acaba
sendo a única decisão a tomar. Os juízes ficam de mãos atadas."
Suspensão
Após o bloqueio, o criador do
Facebook, Mark Zuckerberg, disse estar "chocado" que os esforços de
sua empresa "em proteger dados pessoais poderiam resultar na punição de
todos os usuários brasileiros do WhatsApp pela decisão extrema de um único
juiz".
"Esperamos que a justiça
brasileira reverta rapidamente essa decisão", disse ele, que depois
comemorou a derrubada decisão que debloqueou o serviço de mensagens.
Ao basear sua decisão, o
desembargador do TJ-SP explicou que a juíza de São Bernardo chegou a aplicar
uma multa ao Facebook, mas que isso não fez com que a empresa fornecesse os
dados exigidos e, então, foi adotada a suspensão nacional do aplicativo.
O desembargador afirma que, em
vez da suspensão - medida que ele considerou "extrema" -, a juíza
poderia ter elevado o valor da multa até a empresa ceder. A opinião é
compartilhada por Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio) e professor de Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
"O Marco Civil prevê
mecanismos menos graves, como elevar a multa ou entrar com uma ação por
obstrução da Justiça, que afetem menos a coletividade", afirma Carlos
Affonso Souza. "Esta suspensão seria o mesmo que o Judiciário pedir a
suspensão dos correios, porque alguém mandou uma carta ameaçando outra. Além
disso, acredito que a juíza fez uma interpretação equivocada do Marco
Civil."
O especialista se refere aos
artigos 11 e 12 do Marco Civil da Internet, lei que regula o uso da rede no
país e que foi sancionada em abril do ano passado. O artigo 11 estabelece que
"qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de
registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de
aplicações de internet (...) em território nacional" deve respeitar a
legislação brasileira.
Já o artigo 12 prevê sanções
caso isso não seja cumprido: advertência, multa, as suspensões das atividades
previstas no artigo 11 ou sua proibição. "No meu entendimento, o alvo da
sanção deveriam ser as atividades do artigo 11, mas não acredito que o serviço
como um todo deveria ter sido suspenso", diz Carlos Affonso Souza.
À frente de um escritório
especializado em Direito Digital, a advogada Patrícia Peck Pinheiro explica que
esta suspensão prevista pelo Marco Civil não chegou a ser regulamentada por uma
lei posterior, o que faz com que "não haja um entendimento único de como
aplicar esta punição" e que surjam "interpretações diferentes"
acerca disso.
"(A decisão da juíza)
pareceu desproporcional por afetar o Brasil todo. Poderia ter um alcance menor.
Acho que ela quis mostrar que é uma autoridade e estava fazendo sério", diz
ela. "O entendimento do Ministério Público é de que a punição deve ser
proporcional, ou seja, deve proteger uma pessoa em um determinado caso, mas não
pode gerar um dano coletivo."
'Correta e proporcional'
No entanto, o advogado
especialista em Direito Digital Leonardo Serra de Almeida Pacheco diz que o
Judiciário cumpriu com todos os passos previstos no Marco Civil e que a
suspensão foi "correta e proporcional". Assim como outros
especialistas ouvidos para esta reportagem, ele reprova a recusa do WhatsApp em
fornecer informações.
"Não cabe às empresas de
internet decidir se devem ou não entregar dados solicitados pela Justiça. O que
temos visto recentemente é empresas de internet agindo com covardia e fugindo
da responsabilidade", opina Pacheco. O Facebook usou alguns argumentos
para justificar sua recusa. Além de apontar uma violação do Marco Civil, alegou
que o WhatsApp é uma empresa distinta.
Rony Vainzof, sócio do
escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados e professor de
direito digital na Escola Paulista de Direito, considera esse argumento
"impertinente" e diz que a jurisprudência brasileira o invalida.
"Como o WhatsApp não pode
responder diretamente à Justiça brasileira, mas pode entrar com um recurso no
país? Além disso, decisões da Justiça indicam que o Facebook pode sim ser
responsabilizado porque a rede social e o WhatsApp pertencem ao mesmo grupo
econômico", afirma Vainzof.
O Facebook também afirmou que,
como o WhatsApp não tem sede no Brasil, a empresa por trás do serviço de mensagens
deveria ser intimada a cumprir a ordem judicial por meio de um acordo de
cooperação jurídica internacional, que foi estabelecido entre o Brasil e os
Estados Unidos em 1997.
No entanto, para Carlos
Affonso Souza, trata-se de uma medida "burocrática e lenta que precisa ser
revisada para os tempos da internet". Vainzof concorda que este acordo
"não acompanhou a evolução da tecnologia".
"Não funciona, porque o
envio de dados pode levar seis meses para ser feito, o que só reforça a
necessidade de termos mais acordos multilaterais para que uma empresa que não
tem sede no Brasil pode ser intimada rapidamente."
Patrícia Peck Pinheiro defende
a criação de uma convenção internacional para regular o tema, para "ajudar
a combater o crime organizado e o terrorismo sem passar por cima dos direitos
numanos e individuais".
Jurisprudência
Enquanto isso não ocorre, os
especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que novos pedidos de suspensão
de serviços online surgirão se as empresas não assumirem uma postura diferente
diante dos pedidos judiciais. Mas agregam que, diante da decisão do Tribunal de
Justiça de São Paulo, será difícil que prosperem.
"É natural que novos
casos apareçam, mas o princípio da proporcionalidade venceu nas duas vezes em
que se procurou suspender ou bloquear o WhatsApp", afirma Carlos Affonso
Souza.
"Essas decisões
revertidas no caso do aplicativo e de outros, como Uber, apontam para um futuro
com um melhor balanceamento entre os interesses em jogo."
O advogado Vainzof diz que a
suspensão temporária do serviço de mensagens cria um "precedente perigoso
que coloca em risco a economia digital".
"Mas também cria
jurisprudência em instâncias superiores de que as empresas que têm sede no
Brasil sejam compelidas a cumprir ordens judiciais por meio de multa ou
apuração de crime de desobediência e não cortando o serviço."
G1
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